Arquivo do autor:Natália

Contos gramáticos – Poesia #16

writer-smoking-pipeo assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da 1a
conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre
achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os eua.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva,
o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

(Leminski)

Contínuo – Poesia #13

Trecho do poema Carta ao acaso, de Leminski:

“Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.”

 

Do sonho bom – Poesia #12

o velho leon e natália em coyoacán

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado
[aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo

(Leminski)

:: Tão difícil aparecer meu nome no meio de alguma poesia.

Ciclo – Poesia #11

diedflower

as flores
são mesmo
umas ingratas
a gente as colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus

(Leminski)

:: Qualquer semelhança entre flores e amores terá sido mera coincidência.

Ana C. – Poesia #9

christmastree

Noite de Natal

Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
Com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
Transar aos 45 anos
Entretanto sou moça
Estreando um bico fino que anda feio,
Pisa mais que deve,
Me leva indesejável pra perto das
Botas pretas
Pudera.

(Ana Cristina César)

:: Eu tinha separado esse poema para o Natal, mas fiquei sem conexão boa durante toda a viagem de fim de ano. Mesmo retardatária, o Natal de Ana C. vale sempre. 🙂

Momentos felizes – Poesia #8

tsuru.

Epigrama nº2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas e vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo persiste.

(Cecília Meireles)

:: Em tempo: Feliz 2016!!! Um ano bem querido pra nós.

Só o que (nos) liberta – Poesia #5

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expe-
[diente protocolo e manifestações de apreço
[ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os enumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítco
Do lirismo que capitula ao que quer que seja for a de si
[mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
[exemplar com cem modelos de cartas
[e as diferentes maneiras de agradar
[às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação

(Manuel Bandeira)

(in)Precisos – Poesia #3

AMOR QUE MORRE

O nosso amor morreu… Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta.
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre… e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir

(Florbela Espanca)

E são precisos sonhos pra partir.

Em nós – Poesia #1

contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
o p que
no pequeno &
se esconde
eu sei por q
só não sei
onde nem e
sobre a mesa vazia
abro a toalha limpa
a mente tranquila
palavra mais linda
aqui se acaba
a noite mais braba
a que não queria
virar puro dia
somos um outro
um deus, enfim,
está conosco

(Leminski)

“e só quando
estamos em nós
estamos em paz”

40 poesias

Que esse blog vive num morre-não morre não é mais novidade. Eu e a Du passamos longas temporadas sem lembrar muito que ele existe, mas o importante é que quando a gente lembra, dá vontade de ressuscitá-lo. Aqui é um lugar bom, é como um twitter que ninguém lê. E sabe lá por que a vaidade humana pede plateia (aplausos?) nem que seja da companheira de blog… Daí não raro escrevemos aqui o que bem caberia num bilhete para ninguém, numa página esquecida da agenda do ano passado, aquela que compramos para organizar a vida e, claro, deixamos de usar no segundo mês. Depois a gente posta o link nas redes sociais, porque não tem jeito: quem escreve quer ser lido e ponto.

Para manter o ritmo de postagens e não deixar o blog morrer (de novo) depois de um sopro bem profundo de vida, a gente faz uns projetos temporários e costuma ter um resultado legal. Esse próprio blog, inclusive, nasceu como um projeto paralelo e temporário nosso. O nome original era 40 Dias e a, a priori, ele duraria somente esse período, mas nós acabamos gostando tanto dele que não tivemos coragem de acabar.

Agora, como mais um levanta-defunto projeto dessa natureza, vamos começar o 40 poesias (sim, nós gostamos do número 40): uma poesia por dia. Para mim, que sou da prosa e não tenho muito o costume de ler poesia, vai ser também uma oportunidade de consumir mais esse gênero; e para a Du, ela vai estar em casa.

Doses diárias de poesia, aqui, a partir de amanhã.

Aparece pra ler. Participa também. Deixa tuas poesias preferidas nos comentários. (:

A gente se vê.